Quando Resident Evil VII foi anunciado, a mudança de perspectiva de jogo para a primeira pessoa casou furor e críticas entre os fãs da série, mas acabou se provando um sopro de renovação para a franquia (que precisava desta renovação) e foi extremamente bem recebido pela crítica e pelos jogadores – funcionando como uma espécie de soft reboot e retorno ao gênero do horror de sobrevivência.
Resident Evil Village (ou Resident Evil VIII) é a sequência direta da aventura de Ethan Winters, mas será que a continuação consegue manter ou superar o sucesso do seu antecessor? Se você quiser as respostas, precisará nos acompanhar nesta assustadora aventura, enquanto exploramos uma sombria vila no interior da Europa, em meio a uivos e sussurros de morte.
Algo Sinistro Vem por Aí
A abertura de Resident Evil Village, narrada a partir de uma história infantil com visual sinistro no melhor estilo Tim Burton ou Neil Gaiman, dá o tom do jogo. Enquanto na aventura anterior tivemos uma grande homenagem ao cinema de terror, com momentos que levavam a O Massacre da Serra Elétrica e inimigos que nos lembravam Jason Vorhees ou Jogos Mortais, Village nos leva em uma jornada que remonta a clássicos da literatura de terror, com lobisomens, monstros em lagos e vampiros.
O jogo começa na casa de Ethan na Europa, onde ele foi morar com sua esposa Mia (o que torna cânone ela ser salva no jogo anterior, visto que o jogador tem a opção de não a salvar) e sua filha recém-nascida, Rose Winters. Após uma breve série de eventos, nos deparamos com o Ethan confuso, nos arredores de uma vila europeia, tentando resgatar sua bebê.
A sequência inicial de Resident Evil Village expõe o que – para mim – é um dos pouquíssimos problemas do jogo: seu ritmo narrativo (não confundir com o ritmo de gameplay, que para mim é uma das grandes qualidades dele). Com dificuldade para distribuir sua narrativa, a introdução de Village é uma série de cenas de corte roteirizadas, interligadas por breves trechos lineares de jogabilidade, para só então dar mais liberdade ao jogador.
É difícil falar deste tema e ao mesmo tempo evitar spoilers, mas durante toda sua duração (cerca de 12 horas para terminar o jogo no modo Normal, com bastante exploração e sem me apressar em nenhum momento) a narrativa oferece ao jogador pouquíssimo aprofundamento sobre o que realmente está acontecendo, deixando para o trecho final do jogo – uma nova série de cenas de corte conectadas por trechos lineares – uma série de diálogos altamente expositivos para fechar a trama.
Porém, mesmo com a narrativa totalmente concentrada em momentos específicos do jogo, cada hora investida em Resident Evil Village passa de forma suave, devido ao ótimo ritmo de jogabilidade que ele apresenta.
Nas Montanhas da Loucura
Além de seus protagonistas e antagonistas – o quinteto de vilões que remete a clássicos da literatura de terror – a vila em si é uma importante personagem de Resident Evil VIII, transbordando personalidade.
Sua beleza decrépita, sua tranquilidade apavorante e a forma como ela transborda uma vida que não está mais ali, através não de textos ou cartas deixadas para trás, mas sim do primoroso posicionamento dos elementos, que narram histórias silenciosas a serem descobertas e interpretadas pelo jogador.
Utilizando a vila como um elemento central, ao redor da qual todos os outros cenários do jogo orbitam, Resident Evil Village consegue transmitir a sensação de um mundo livre e aberto, ao mesmo tempo em que direciona o jogador através de portas trancadas e chaves especiais (a forma como você utiliza uma única chave que se combina com outras, formando uma nova, foi outro ponto que achei muito criativo no jogo). Trata-se de um jogo fundamentalmente linear, mas no qual o jogador tem liberdade para fazer sua exploração pontual e escapar da sensação de estar sendo apenas arrastado pela história, buscando novos itens, equipamentos e ingredientes (que podem ser utilizados para criar refeições que aumentam a vida do personagem, velocidade de deslocamento ou capacidade de defesa).
Oferecendo algo novo a ser explorado toda vez que o jogador retorna a ela, a vila funciona também como a cola que une as áreas satélites do jogo. Estas, por sua vez, alternam e ditam o ritmo do jogo oferecendo ao jogador atmosferas, tanto de ambientação quanto de jogabilidade, bastante diversas.
No castelo da Lady Dimitrescu o jogador irá se deparar com memórias dos primeiros jogos da série, explorando aposentos e resolvendo breves quebra-cabeças, enquanto é perseguido pela mulher gigantesca que abalou corações na internet. Contornar e escapar da dama não é um grande desafio, assim como os inimigos espalhados pelo castelo também não oferecem um combate muito complexo… porém é a constante perseguição, somada ao espetacular áudio do jogo (jogue com fones de ouvido, que permite que você sinta a presença constante dos inimigos ao seu redor, além dos distantes sons do castelo) que definem o clima deste trecho do jogo.
Saindo do castelo Dimitrescu, entretanto, toda esta pegada fica para trás, enquanto o jogo oferece um novo ritmo nas áreas subsequentes. Exploração tensa, investigação e solução de enigmas na mansão Benevento (sobre a qual falarei em um trecho separado), combate frenético em outro momento e outras surpresas aguardam o jogador. Evitarei spoilers maiores aqui, mas Resident Evil Village guarda partes para agradar todos os fãs da série e oferece um ritmo de jogo que nunca cansa e faz o tempo passar voando.
A Caixa em Forma de Coração
Resident Evil Village também aproveita o bom trabalho com a atmosfera e o ritmo do jogo para diluir algumas características clássicas da série e permitir que o jogador se foque no momento e tensão imediatos do jogo.
Calma. Se você é um amante do Tetris de mochila e aprecia o gerenciamento dos seus equipamentos no inventário, o título ainda vai saciar esta vontade. Entretanto, o inventário gerenciável agora limita-se, basicamente, ao equipamento de uso em combate, como armas, granadas, minas, munição e frascos de cura – permitindo inclusive, com a aquisição de expansões para o inventário – que Ethan carregue constantemente um número de armas maior do que era normal para a série.
Para efetivar esta mudança, foram eliminados os tradicionais “baús mágicos” que permitiam que o jogador armazenasse itens e os recuperasse em outro lugar. Em Village, todos os itens importantes para resolução de quebra-cabeças, além de tesouros (que podem ser vendidos ao Duke, o novo e carismático vendedor de equipamentos) e ingredientes utilizados para criar equipamentos (como ervas, componentes químicos e pólvoras) ganharam menus próprios e não ocupam mais o inventário principal – evitando aquele retorno ao baú mais próximo quando você se depara com a estátua na qual precisa usar aquele colar que deixou para trás para poder levar mais duas granadas.
Mas isto não faz com que o inventário do jogo tenha se tornado menos interessante. Os itens ainda podem ser analisados, revelando segredos ou tesouros, que por sua vez podem ser combinados em tesouros ainda mais valiosos.
Para alguns, adeptos do backtracking que o sistema de baú proporcionava, pode ser que a mudança faça torcer o nariz. Para minha experiência pessoal, permitiu que o jogo se concentrasse menos na ansiedade causada pela decisão de levar ou não um determinado item em sua jornada (as custas de espaço valioso para um item de cura ou arma), e focasse na tensão imediata oferecida pelo cenário, atmosfera e inimigos.
Bird Box
É impossível falar de Resident Evil Village sem falar do incrível trabalho de áudio que a Capcom fez no título. Jogá-lo de fone de ouvido é praticamente uma obrigação, pois permite extrair o máximo do efeito de imersão 3D do jogo.
Compatível com o Tempest – sistema de áudio 3D do Playstation 5 – o uso de fones de ouvido permite que o jogador sinta-se imerso no som do jogo de forma assustadora, sendo possível determinar a direção dos passos distantes dentro da mansão Dimitrescu ou então do gotejar lento dentro das cavernas de Mureau.
Simulando um efeito binaural (que altera o som, além do atraso dele entre os dois ouvidos, para “enganar” o cérebro e produzir um efeito tridimensional), é possível ouvir sons vindo por trás de você, ao lado e até mesmo por cima de sua cabeça. O efeito é tão imersivo que, em determinado cenário, ao ouvir os barulhos de madeira rangendo contra o silêncio, logo acima da minha cabeça, duas vezes me senti impelido a tirar o fone para verificar se não era o vizinho acima arrastando móveis.
Se a perspectiva em primeira pessoa fez muito para tornar o horror de sobrevivência de Resident Evil ainda mais imersivo, o áudio completa o quebra-cabeça e oferece aquela pitada a mais de tensão que te arrasta para dentro do jogo… um ingrediente que você não vai querer perder.
Normalmente eu faço este PS ao fim do texto, mas como falei do Áudio 3D, achei importante mencionar aqui. A versão que joguei foi no Playstation 5, de modo que não foi possível aferir como o áudio 3D se comporta no PC, Xbox One/Series ou mesmo no Playstation 4. De todo modo, independentemente da plataforma na qual você irá jogar, aproveitar o jogo com fones de ouvido (ou um belo sistema surround) vai ampliar em muito a imersão no mundo sinistro de Village.
Criaturas da Noite
Com cerca de 10 a 15 horas do jogo principal, Village oferece ainda o modo Mercenários, uma espécie de “modo arcade” para quem quiser aproveitar mais as mecânicas de tiro e combate do jogo.
Disponível após o final da campanha, o Mercenários coloca o jogador em combate contra os oponentes do jogo, com o objetivo de eliminar os inimigos da forma mais rápida possível, conectando combos e ganhando pontos que liberam vantagens e os mapas seguintes.
Cada partida oferece uma certa dose de variedade através da forma como você investe seu dinheiro na loja do Duke (adquirindo os equipamentos ou aprimoramentos necessários) e também com a captura de esferas azuis durante as fases, que permitem que você escolha uma entre três vantagens aleatórias para melhorar seu personagem (com características como maior dano com a faca, aumento de vida, maior velocidade, fazer inimigos mortos explodirem ocasionalmente e etc).
Adicionalmente, o modo facilita para o jogador mostrando a barra de vida dos inimigos, permitindo que você trace estratégias que otimize a utilização dos equipamentos e acelere a eliminação dos inimigos.
E isto é bastante necessário, pois o modo amplia bastante o tempo de jogo e força o jogador a enfrentar cada fase mais de uma vez, determinando a melhor estratégia, equipamentos e rotas para eliminar os inimigos rapidamente e em sequência, somando os pontos necessários para aquela desejada classificação máxima.
O verão terminou e ainda não estamos salvos
Se você estiver lendo esta análise e tiver gostado de Resident Evil VII, não preciso falar mais nada. Vá jogar Resident Evil Village e não tenho dúvidas de que você terá uma experiência incrível.
Se não for o seu caso, saiba que Resident Evil Village entende suas qualidades e foca naquilo que a série tem de melhor desde a mudança de perspectiva – imersão e atmosfera – sem perder o contato com os elementos que tornou a franquia tão famosa, como o combate, resolução de quebra-cabeças e histórias sobre vírus e armas biológicas.
Falando em vírus, muito especula-se sobre o impacto da pandemia no desenvolvimento do jogo e diversos possíveis cortes que ele tenha sofrido. Mas este é um assunto que – com sorte – veremos ser desbravado no futuro, e cabe a mim analisar a obra que tenho em mãos.
Na visão ampla, a nova aventura de Ethan não traz muitas novidades. Sabemos que, independentemente ao quão bizarros e diferentes sejam seus antagonistas – desde a vampira Lady Dimitrescu ao arremedo de Doutor Frankenstein de Heisenberg – no fim tudo irá se conectar com algum vírus, mofo, bactéria ou qualquer coisa que saia de um laboratório de armas biológicas.
Mas o coração de Resident Evil Village é intimista e imediato e no momento a momento o jogo oferece o melhor da série em um mergulho incrível através de um universo bizarro entre enormes montanhas na Europa, levando o jogador por uma série de cenários que ao mesmo tempo são coesos e oferecem variedade suficiente para que o jogo nunca se torne cansativo, além de terminar com aquela pitada que nos deixa curiosos para os rumos de um próximo título da franquia.
Designer por profissão e gamer de coração, Raphael é apaixonado por jogos que sejam imersivos e permitam que ele se esgueire por trás de seus inimigos, eliminando-os de forma silenciosa e impiedosa.