Em uma noite chuvosa, um mestre de kung-fu é morto por um dos seus ex-alunos e seu filho ou filha (à escolha do jogador ou jogadora) assiste a tudo. Mas graças a um amuleto capaz de revivê-la (ao custo de envelhecimento), esta criança cresce se preparando para a vingança contra o assassino e seus quatro companheiros.
O novo jogo do estúdio francês Sloclap promete levar o jogador por uma jornada inspiradas nos filmes de kung-fu de Hong Kong. Mas será que a desenvolvedora, responsável também pelo complexo sistema de luta em Absolver, consegue capturar o espírito destes filmes, ao mesmo tempo que moderniza a fórmula dos brawlers? Continue lendo o review para saber.
O Mestre, o Aluno, a Criança
Sifu é uma história de vingança, contada de forma simples e direta. Após ver seu pai ser morto pelo ex-aluno Yang e seus comparsas, a personagem parte em uma jornada violenta. Cada um dos estágios leva o jogador por uma região da cidade representando os cinco elementos (Madeira, Fogo, Água, Metal e Terra), onde ele precisará enfrentar um dos responsáveis pela morte do seu pai: o Botanista, o Lutador, a Artista, a CEO e finalmente o Líder.
Inspirado nos jogos do estilo brawlers (ou beat’n’up), como Final Fight ou Streets of Rage, ou mesmo suas versões mais modernas, como a série Yakuza, Sifu incorpora os elementos do gênero, como muitos inimigos, foco no combate e chefes exigentes, mas busca modernizar a fórmula com elementos que remetem a uma espécie de rogue like.
Como um estilo nascido e crescido nas máquinas de fliperama, os brawlers eram devoradores de fichas. Muitos inimigos na tela, dificuldade em fazer o controle de multidão, chefões com longos frames de invulnerabilidade e combos altamente punitivos, o estilo sempre rendeu uma migração difícil para os consoles, com elementos como continues infinitos e saves deixando a experiência um bocado mais ‘água com açúcar’.
Este não é o caso de Sifu, que faz um retorno às origens do gênero buscando um equilíbrio entre a dificuldade punitiva e a frustração de começar do zero após algumas mortes – mas sem recorrer à simular fichas/créditos limitados ou algo do tipo.
O amuleto da personagem, capaz de retardar a sua morte, é o elemento crucial com o qual a Sloclap tenta replicar, mas sem copiar, o jogo devorando suas fichas – em Sifu, ele devora seu tempo de vida (da personagem, não do jogador).
Começamos o jogo com 20 anos de idade e um “Contador de Mortes” em 0. Cada vez a personagem morre (o que pode acontecer com bastante facilidade, principalmente nos chefes ou cercado por muitos inimigos), o Contador de Mortes sobe em 1 e a personagem envelhece um número de anos igual ao número do Contador. Assim, a primeira morte envelhece dos 20 para o 21, a segunda para 23 (Contador 2), a terceira para 26 (Contador 3).
A cada 10 anos que envelhece, a personagem recebe um bônus no dano e uma redução em sua barra de vida, além de ficar visivelmente mais velho, com barba, marcas de expressão e cabelos brancos. Uma vez cruzado o limite dos 70 anos, o amuleto se quebra e a próxima morte resulta no fim do jogo.
Não há como reverter o envelhecimento, mas certas ações (como derrotar chefes, mini chefes ou outros inimigos poderosos ou ainda depositar pontos de experiência em alguns santuários espalhados pela fase) podem reduzir o seu Contador de Mortes, fazendo com o que o envelhecimento seja desacelerado. Esta mecânica ajuda a equilibrar o jogo, fazendo com que muitas mortes em uma mesma fase ou luta façam a personagem envelhecer rapidamente, enquanto mortes distantes umas das outras afetam menos a sua idade.
Mas para evitar sequências rápidas de derrotas, você precisará dominar seu kung-fu.
Mostre seu Kung-fu, Pequeno Gafanhoto
Rápido, frenético e focado são palavras que descrevem com facilidade o combate em Sifu. Com movimentos inspirados no estilo Pak Mei (e coreografado por Benjamin Colussi, um mestre no estilo), seus golpes são velozes, curtos e concentrados em um único alvo, enquanto suas defesas se dividem em bloqueios, aparos e esquivas.
Fácil de aprender, mas difícil de dominar, é um mantra que Sifu leva muito a sério. Ficar massacrando os botões pode até lhe levar além da primeira fase, porém a segunda (o Clube, onde você deverá enfrentar Sean, o Lutador) é uma barreira praticamente intransponível se o jogador ainda não tiver dominado as mecânicas do jogo.
Golpes rápidos e fortes são encadeados em sequências plasticamente belas de combos, mas a personagem precisa defender, aparar e se esquivar com frequência para não ser simplesmente massacrado por seus oponentes. Além de golpes indefensáveis (marcados por uma aura vermelha nos membros do oponente), uma barra de Estrutura impede o jogador de se feche na defesa de forma ininterrupta. Cada golpe defendido enche a barra e faz com que, depois de um tempo, a personagem fique atordoada e aberta para punição.
Para evitar isto é necessário aparar e esquivar. O aparo pode ser feito pressionando a defesa no momento exato do golpe, interrompendo o movimento do inimigo e deixando-o suscetível a um contragolpe. Mas nem todo golpe é aparável e para estes é necessário utilizar a esquiva, que é executada segurando o botão de defesa (L1, no caso do Playstation) e movendo o analógico em alguma direção.
Para que a esquiva funcione, o jogador precisa fazer uma leitura precisa do movimento do inimigo. Golpes altos são esquivados movendo o analógico para baixo, rasteiras exigem o movimento para cima, enquanto outros golpes podem ser desviados com movimentos laterais. Diferentemente do aparo, a esquiva não interrompe o movimento do inimigo, de modo que é necessário esquivar-se de todos os movimentos do combo para finalmente ter abertura para punir o oponente.
Finalmente, os inimigos também possuem barras de estrutura e quebrá-la permite um finalizador que, na maior parte das vezes, elimina aquele oponente do combate (o oferece ao jogador alguns frames de invulnerabilidade). Então, cabe ao jogador decidir se determinado inimigo é melhor derrotado esgotando sua vida ou sua barra de estrutura.
Diversas armas também estão espalhadas pelo cenário e elas são importantíssimas para seu sucesso, seja nas suas mãos (onde elas são poderosas e causam muito dano na vida ou estrutura dos oponentes) ou evitando que elas sejam utilizadas pelos oponentes, que podem acabar com você com pouquíssimos golpes bem colocados.
Como resultado, Sifu replica com qualidade, tanto de interatividade quanto visual, a experiência dos filmes de kung fu. Para derrotar um inimigo forte é necessário dominar seus movimentos, fazer as esquivas nas direções corretas, aparar seus golpes e golpeá-lo muitas e muitas vezes. Enquanto para dominar um grupo, é necessário utilizar o cenário, bancadas e armas espalhadas para controlar a multidão, evitar ser cercado e derrotar um oponente por vez.
O sistema de luta criado pela Sloclap tem enorme potencial e espero vê-lo em outros jogos da desenvolvedora no futuro, mas ainda senti algumas dificuldades e alguns elementos poderiam ser aprimorados.
Primeiramente, o tutorial do jogo parece não dar a devida importância à esquiva, ficando a impressão de que o aparo é o princípio fundamental do jogo. Mas já no primeiro chefe você irá descobrir que é impossível avançar no jogo sem dominar a esquiva e a direção dos golpes do oponente.
Complicando um pouco mais, o jogo oferece pouco feedback visual ou sonoro ao jogador. Golpes aparados ou não aparados muitas vezes são difíceis de ler (e o fato da janela de resposta ser curtíssima faz com que o aparo seja extremamente difícil e muitas vezes você não responda com seu contratado por não ter percebido a tempo que o aparo foi bem sucedido) e muitos golpes (principalmente dos chefes) não têm a direção muito clara, ficando difícil de precisar se é um golpe alto ou baixo e como ele deve ser esquivado.
Some isto tudo aos “tells” (o movimento inicial do golpe, normalmente utilizado para que o jogador antecipe o golpe do inimigo) curtíssimos, rápidos e ocasionalmente confusos e muitos embates do jogo acabam virando uma sequência de tentativas e erros e experimentações, até que você decore na força bruta cada movimento do inimigo e descubra como ele deve ser defendido.
Em muitas lutas, mesmo aquelas em que dominei os padrões do inimigo e já o derroto sem muita dificuldade, a sensação é de que estou adivinhando e antecipando os movimentos do oponente e não reagindo a eles, diferente do que sinto em um jogo como Sekiro ou Nioh 2 (citei o 2 porque o primeiro tem o mesmo problema de tells não muito claros) por exemplo.
Porém, mais do que isto, a falta de um feedback claro faz com que seja mais difícil entender o que você está errando em uma determinada luta. Aquele determinado golpe te atingiu porque você tentou apará-lo e ele não é aparável? Você aparou na hora errada? Deveria ter esquivado? Se sim, em qual direção? Esta falta de uma resposta clara dificulta o aprendizado do jogador e faz com que você precisa repetir a luta diversas vezes, muitas vezes sem entender em qual fundamento você precisa melhorar.
E repetir, por mais frustrante que seja em muitas ocasiões, é parte fundamental de Sifu.
Levante-se e Tente Novamente, Pequeno Gafanhoto
Embora esteja distante de ser considerado um roguelike, Sifu abraça alguns elementos do gênero para modernizar o estilo brawler para os consoles.
Em resumo, seu objetivo é chegar no próximo estágio o mais jovem o possível e para isto é necessário repetir diversas vezes cada fase. Durante cada tentativa, o jogador irá liberar avanços nos santuários espalhados pelo jogo (como ganhar mais vida a cada oponente derrotado ou recuperar mais sua estrutura a cada esquiva) e golpes que podem ser adquiridos com experiência. Ao adquirir um golpe, ele é temporário e vale apenas para aquela tentativa, porém é possível investir cinco vezes o valor em experiência para liberar o golpe permanentemente, tornando-o disponível para todas as tentativas – o que torna possível fazer algumas fases com o único objetivo de ganhar experiência e liberar permanentemente seus novos golpes.
O principal elemento que o jogador leva entre as tentativas são os itens do Quadro de Detetive, um painel com pistas e objetos colecionados sobre os cinco oponentes e suas bases. Alguns itens como chaves, cartões de acesso e códigos permitem fazer uso de atalhos para encurtar seu caminho até o chefão. Deste modo, o jogo incentiva que você jogue várias vezes a mesma fase e retorne aos estágios anteriores com novos itens para acessar novos caminhos.
Mas diferentemente do que ocorre em outros roguelikes, Sifu registra permanentemente a melhor tentativa do jogador em cada estádio. Combinado com a descoberta de itens nas outras fases, isto permite que você volte nas fases anteriores e se concentre nela até obter o melhor resultado possível e passe para as próximas, sem receio de precisar voltar nela novamente, acumulando a sua economia de idade entre os estágios.
Explicando um pouco melhor, mas trocando as bolas para evitar spoilers: é muito provável que você chegue no terceiro estágio com uma idade avançada, acumulando as mortes entre os dois primeiros estágios. Porém, no terceiro estágio você encontra um cartão de acesso para um portão na primeira fase, que permite chegar mais rapidamente no primeiro chefão. Você retorna ao primeiro estágio e desta vez consegue terminá-lo com apenas 21 anos (uma única morte). A partir deste ponto, você vai iniciar o segundo estágio sempre com 21 anos – precisando retornar ao primeiro apenas se quiser explorar mais o cenário ou tentar melhorar o resultado, finalizando-o sem qualquer morte. Mas mesmo retornando ao primeiro estágio e morrendo diversas vezes, o resultado de 21 anos no primeiro estágio será mantido permanentemente, equilibrando a dificuldade e evitando que você precise fazer uma corrida perfeita das cinco fases em sequência.
Vitória e Frustração
Com uma arte elegante, com texturas simples e planas de cores chapadas e a animação que remete fortemente aos filmes de kung fu, Sifu oferece um jogo veloz, empolgante, desafiador e cheio de personalidade.
Dominar a arte marcial e a cada tentativa eliminar mais facilmente seus oponentes causa uma sensação de vitória incrível, principalmente devido aos sistemas que tornam seus sucessos permanentes. Entretanto, até você chegar ao ponto de dominar seu kung fu e seus adversários, Sifu também causa muita frustração e vontade de desistir do jogo, falhando em comunicar com clareza onde o jogador está errando ou em quais fundamentos precisa melhorar, ou mesmo brigando contra a câmera do jogo que insiste em se posicionar de forma a dificultar a leitura do oponente ou da área (e por favor, me deixem virar a câmera durante as finalizações, para facilitar o planejamento dos próximos movimentos!).
Mas na medida em que estes pequenos tropeços são superados, Sifu transforma você em um mestre do Pak Mei estrelando um clássico filme de Hong Kong, dominando suas esquivas, flutuando pelo ambiente e derrubando um oponente atrás do outro com golpes ágeis, ferozes e belíssimos. Para quem é resistente à frustração e quer testar a agilidade dos seus dedos, Sifu oferece um desafio de muita qualidade, além de pavimentar um caminho sólido para os próximos jogos do estúdio.
PS.: a Sloclap anunciou recentemente que Sifu deverá receber um patch de atualização com novas opções de acessibilidade, incluindo modo de alto contraste e novos níveis de dificuldade (tanto mais fácil quanto mais difícil que o padrão). Esta análise foi publicada antes desta atualização.
Sifu está disponível para Playstation 4, Playstation 5 e PC. A análise foi feita na versão Playstation 5, com cópia gentilmente cedida pela Sloclap.
Designer por profissão e gamer de coração, Raphael é apaixonado por jogos que sejam imersivos e permitam que ele se esgueire por trás de seus inimigos, eliminando-os de forma silenciosa e impiedosa.