Se existe algo que vem e vai em ciclos no mundo dos games é a discussão sobre gêneros e toda a complexidade que existe em tentar encaixar jogos em rótulos pré-estabelecidos que os definam. Deathloop, o novo jogo da Arkane Lyon, é um destes títulos que desafiam a descrição, ao ponto de que os próprios trailers encontraram dificuldade em transmitir exatamente do que se trata o jogo.
Mas então, do que se trata Deathloop? Immersive sim, shooter em primeira pessoa, rogue light, multiplayer? Explorando elementos de todos estes gêneros, Deathloop tenta encontrar um equilíbrio de ideia sem perder o DNA tão marcante da desenvolvedora. Será que ela consegue?
Bang Bang, I Hit the Ground
Colt, o protagonista, desperta em uma praia após assistir a sua própria morte. Tão confusa quanto o jogador, o personagem não sabe quem é ou como foi parar naquele lugar… aliás, que lugar é esse? Esta introdução é um bom resumo dos primeiros momentos de Deathloop: confuso e sufocante, principalmente pela quantidade de informações e tutoriais que precisamos absorver rapidamente, mas com uma premissa suficiente provocante para que sigamos em frente.
Em algum tempo descobrimos que Colt está em Blackreef, uma ilha presa em um loop temporal, onde o mesmo dia se repete infinitamente, do nascer ao pôr-do-sol. Sem precisar lidar com as consequências do dia seguinte, a população de Blackreef reprisa constantemente um dia de festa, experiências sinistras, violência e hedonismo, em um ciclo que Colt quer quebrar para se ver livre do pesadelo de despertar, todos os dias, na mesma praia.
Para isto é necessário assassinar os oito visionários, importantes figuras da sociedade de Blackreef. Entretanto, dado que todos os habitantes da ilha ressurgem vivos novamente no início do dia seguinte, Colt precisa eliminá-los em um único ciclo, uma tarefa repleta de desafios.
Para dificultar ainda mais o trabalho, Julianna – um dos visionários – passa seus dias caçando Colt violentamente, em uma constante tentativa de impedi-lo de quebrar o ciclo de Deathloop.
Bang Bang, That Awful Sound
É impossível para mim, como um fã de Dishonored, não analisar Deathloop em relação aos trabalhos anteriores da Arkane. O novo título possui uma pegada de jogabilidade (até mesmo o peso dos controles e alguns dos poderes) muito similar aos trabalhos anteriores deles, porém busca ativamente – e eu diria, com muito sucesso – lidar de novas maneiras com algumas características de Dishonored.
A primeira e principal destas questões (pois ela amarra diversas das outras), é o vício em Quick Save e Quick Load que as mecânicas de Dishonored provocavam. Afastando-se do sistema de furtividade altamente punitivo dos jogos anteriores, onde um erro podia atrapalhar totalmente os planos do jogador e até mesmo influenciar no final da história, Deathloop equilibra com maior precisão a furtividade e o combate aberto, de modo que ser detectado pelos oponentes resulta não na necessidade de recarregar um save anterior, mas sim em improvisar, envolver-se em um tiroteio ou combate franco e aberto e lidar com as consequências do “erro”.
O jogo ainda limita o salvamento ao início de cada distrito (não existe a opção de salvar rapidamente durante as incursões), obrigando você a lidar com os erros mais diretamente. Mas para a experiência não ficar frustrante e dar abertura para experimentações e riscos, Colt possui um poder que permite que ele retorne da morte até duas vezes por ciclo (a terceira morte reinicia o ciclo). Sempre que você morre, o jogo rebobina o protagonista (mas não suas ações) até o último ponto seguro e você pode optar por retornar ao embate ou bater em retirada e tentar outras aproximações.
Mas estou me antecipando, vamos começar explicando como é o “dia a dia” em Deathloop:
Como se fosse um parente distante do gênero rogue like, Deathloop funciona em ciclos, que são intervalos entre a manhã e a noite de Blackreef, após os quais todos os elementos da ilha retornam ao seu estado original para o dia/ciclo seguinte. Pessoas que morreram voltam a vida, alterações no ambiente são desfeitas e as consequências dos seus atos desaparecem. As únicas coisas que são preservadas entre cada ciclo são alguns equipamentos que o jogador torna permanente através de um processo de infusão (que é pago com Residuum, a única “moeda corrente” do jogo) e o conhecimento adquirido pelo personagem. O conhecimento, este sim, é a principal arma do jogador.
Cada ciclo de Blackreef é dividido em quatro períodos do dia: manhã, meio-dia, tarde e noite, sendo que o jogador escolhe visitar um dos quatro distritos da ilha em cada um deles. Deathloop não possui um ciclo de dia e noite propriamente dito, pois uma vez dentro de um dos distritos, o tempo não passa e o jogador possui liberdade para explorar a área sem precisar se preocupar com passar de um período para o outro. Apenas quando deixa um distrito e vai para outro (ou retorna ao mesmo) o tempo avança para o período seguinte… e este avanço é de grande importância para o fluxo do jogo.
Em cada período, os distritos do jogo mudam. Uma área inacessível pela manhã pode estar disponível durante a tarde. Uma personagem que se encontra protegida durante o meio-dia, pode estar em um local mais vulnerável durante a festa que ela promove a noite. Neste ponto é que entra a parte immersive sim do jogo, pois cada área é ampla o suficiente não apenas para que o jogador a explore em busca de informações, novos equipamentos, segredos opcionais e os seus alvos, como muitos destes objetivos contam com diversas formas de serem atingidos e superados, indo desde a força bruta e pé na porta até aquela opção em que você entra, executa seu objetivo e sai como um fantasma.
É nesta exploração de cada distrito, em cada período e em como tudo isto se conecta no loop temporal de cada ciclo que está o coração e alma de Deathloop. A agenda de cada um dos visionários torna impossível assassinar todos em um único ciclo, mas cada informação descoberta ajuda Colt a manipular os alvos e alterar o ambiente de modo a conseguir eliminá-los todos em um único dia, como se posicionasse suas peças em um grande tabuleiro de xadrez, para o xeque-mate perfeito.
Para evitar spoilers, vou inventar um exemplo que ilustra o tipo de manipulação que você precisará fazer. Imagine que durante o meio-dia, em um determinado mapa, você descobre que um dos visionários marcou um encontro com outro personagem, para entregar um código importante para um esconderijo. Então, no período da noite, você visita o local do encontro marcado e descobre que o encontro não aconteceu porque o prédio onde o equipamento estava guardado pegou fogo no período da tarde. No amanhecer do ciclo seguinte, você pode visitar o prédio, descobrir as causas do incêndio e evitá-lo. Sem o acidente, o encontro noturno acontece e você consegue o tal código que abre o esconderijo. A partir daí, Colt já conhece o código e nos ciclos seguintes você não precisa mais evitar o incêndio, podendo se concentrar em outras tarefas.
Para dar ainda mais dinâmica ao jogo, o jogador conta ainda com uma boa variedade de armas (que possuem nível de raridade, atributos especiais e até mesmo alguns equipamentos únicos com propriedades exclusivas), berloques que conferem vantagens ao Colt (como andar mais rápido enquanto está furtivo, receber menos dano ou hackear minas) e as Placas, que podem ser tomadas de visionários mortos e oferecem poderes especiais (como um rápido teleporte de curto alcance, similar ao Blink de Dishonored, ou uma espécie de telecinesia que permite erguer e arremessar oponentes).
Some isto a possibilidade de infundir alguns equipamentos para que eles permaneçam com você entre os ciclos e você começa a moldar o protagonista para o seu estilo de jogo (ou até mesmo para uma missão específica). Armas silenciadas e poderes como Finta e Éter são ótimos para quem quer sair e entrar sem ser visto, Karnese e Nexo podem ajudar aqueles que querem ser estratégicos, porém agressivos, enquanto armas pesadas e Desordem fazem de Colt um soldado difícil de derrubar.
Bang Bang, My Baby Shot me Down
Agora, imagine-se jogando xadrez, posicionando as suas peças e manipulando seu oponente para o xeque-mate perfeito, e então um gato sobe no tabuleiro e começa a derrubar as peças. Este gato é Julianna, a chefe de segurança de Blackreef.
Ocasionalmente, Julianna aparece no distrito onde você está, fecha as saídas e começa a caçar o Colt, tornando necessário enfrentá-la e derrotá-la ou então hackear a antena que controla as portas e fugir do distrito, em um jogo de gato e rato imprevisível. Para aumentar a tensão, a Julianna invadindo o seu jogo pode ser um outro jogador, em um multiplayer similar ao que vimos em jogos como Dark Souls.
Após avançar um pouco na campanha principal, Deathloop libera para o jogador a opção Preservar o Loop na tela inicial. Selecione-a e você poderá jogar com Julianna, invadindo o mundo de jogadores aleatórios ou seus amigos, para colocar um pouco mais de tensão e aleatoriedade no jogo deles. Como a caçadora, você tem acesso a uma habilidade exclusiva que permite copiar a aparência de outros personagens, mas também pode reunir seu próprio conjunto de equipamentos e poderes, aprimorando a sua própria personagem para novas invasões.
Este elemento de multiplayer adiciona um fator de imprevisibilidade ao jogo, pois você nunca sabe como uma nova Julianna irá se comportar ou qual tipo de poder e equipamento ela terá, e também recompensa suas vitórias (ao morrer, a antagonista deixa para trás parte do seu equipamento e a Placa que estiver usando). Mas caso você prefira não ter este elemento, é possível configurar seu jogo para que ele só possa ser invadido por seus amigos ou então bloquear totalmente a sua partida, fazendo com que a Julianna em seu jogo seja um bot controlado pela CPU (o que, na minha opinião, tira um pouco a graça da invasão, pois a antagonista fica muito mais fácil e previsível).
Para tornar a caçada ainda mais interessante, a chefe de segurança de Blackreef é uma presença constante no rádio de Colt e ela sabe muito mais sobre a ilha e o próprio protagonista do que ele mesmo (ou o jogador). As interações entre os dois são sempre divertidas, cheias de provocações, sarcasmos e ironias, engrandecendo em muito o jogo. Em todo o meu período de jogo, eles também nunca repetiram uma conversa, mantendo o diálogo entre eles sempre fresco (claro que eu sei que este diálogo inevitavelmente terá um fim, mas é ótimo saber que no período normal de jogo temos o suficiente para não ter repetições ou ficar cansativo).
Seasons Came and Changed the Time
Ok! Admito que, mesmo em texto, explicar o que é Deathloop e como ele funciona, ao mesmo tempo em que fugimos de spoilers que são muito mais interessantes quando descobertos pelo próprio jogador, não é fácil. Mas sem dúvida ele é um jogo que vale a pena experimentar, principalmente se for fã dos trabalhos anteriores da Arkane. Mas a verdade é que o jogo soa muito mais complicado do que realmente é.
Por mais que a ideia de manipular quatro mapas diferentes, em quatro períodos diferentes de cada ciclo possa parecer complexa, Deathloop faz um ótimo trabalho em compilar todas as informações de que o jogador precisa para seguir sempre em frente e nunca ficar encalhado. Telas de pistas e missões garantem que, mesmo que as vezes pareça sufocante a quantidade de linhas que você pode seguir, você nunca ficará sem saber quais são seus possíveis próximos passos, porém sem antecipar demais os eventos.
A beleza de Deathloop está exatamente na forma como ele equilibra e extrai elementos positivos de suas propostas. Se você achava o elemento de furtividade de Dishonored cansativo e frustrante, o novo título é muito mais leniente e tem o tiroteio muito mais satisfatório e menos punitivo. Sua preocupação é com as características “rogue like”? O conceito de ciclos é muito mais sobre aprender o cenário, explorar e manipular seus elementos do que fazer repetições quase infinitas. A complexidade da missão principal lhe preocupa? Deathloop entrega o suficiente para que você nunca fique encalhado, mas sem levar você pela mão até o objetivo (um exemplo: pense que o jogo vai lhe dizer que você precisa invadir um lugar em busca de informações, mas não vai lhe dizer como ou por onde fazê-lo – o que depende mais do seu estilo de jogo e poderes disponíveis).
Talvez esta busca por um jogo menos punitivo faça com que, em termos de desafio, Deathloop caia um pouco para o lado do fácil ou moderado, o que pode ser ruim para quem for encarar o jogo esperando o tipo de dificuldade normalmente encontrado em jogos do tipo roguelike (lembrando que o jogo não é um roguelike, nem roguelight, embora tenha elementos deste gênero) e a AI dos oponentes é bastante tranquila e perde/esquece do jogador com facilidade (a ponto do próprio jogo falar sobre isto em um documento, dizendo que as pessoas na ilha são meio desatentas), mas acredito que até isto pode ser positivo no sentido de torná-lo mais acessível para um público maior (embora uma opção de aumentar a dificuldade ou tornar a AI dos oponentes mais ‘inteligente’ seria bem-vinda).
Por fim, Deathloop é mais uma aula de level design da Arkane (que já nos presenteou com literais obras de arte, como a Mansão Mecânica em Dishonored 2). A forma como as ações entre os distritos e períodos do ciclo influenciam umas as outras é incrível, fazendo com que os quatro distritos não soem como áreas distintas, mas sim partes de um todo.
Em resumo, Deathloop é divertido e instigante, mantendo o jogador interessado do começo ao fim de sua campanha, e com conteúdo adicional suficiente para quem ainda quer explorar um pouco mais os segredos de Blackreef. Com suas mecânicas menos punitivas e mais acessíveis que nos jogos anteriores da Arkane, o jogador nunca se encontrará encalhado ou sem saber como prosseguir, mas sem a sensação de que está sendo guiado de carona pela história. Com pouquíssimas falhas e enormes acertos, Deathloop é um dos meus fortes candidatos a jogo do ano e o jogo que, assim espero, resulte no sucesso de crítica e de público que a Arkane sempre mereceu.
PS.: One More Thing
Eu preferi concentrar minha análise de Deathloop no que faz dele um jogo especial, que são suas mecânicas, pois imaginei que já ficaria confuso o suficiente. Por isto resolvi resumir aqui, no finalzinho, alguns elementos adicionais que acho que valem a pena serem mencionados.
Deathloop é um jogo muito bonito, com seu visual meio sessentista e retro futurista, com aquele estilo que é característico da desenvolvedora. Embora não seja espetacular em sua parte técnica, o fato de ele rodar a 60 fps cravados no Playstation 5 torna o jogo muito mais gostoso e responsivo. Ele conta ainda com a possibilidade de ativar um modo de alta qualidade, que aumenta a resolução dinâmica, porém tem mais dificuldade para manter 60 fps estáveis (tornando este modo útil apenas se o Playstation 5 tivesse suporte a VRR, o que ele não tem), e um modo Ray Tracing, que limita o desempenho a 30 fps e adiciona sombra e oclusão ambiente na forma de ray tracing (particularmente, não acho que o ganho gráfico compense a redução do desempenho, neste caso). Uma crítica necessária, neste sentido, é a necessidade de reiniciar o jogo (não apenas retornar ao menu principal, mas realmente fechar o jogo e reabri-lo) para trocar o modo gráfico.
Embora eu não tenha sentido isto como um problema gigante no jogo, a AI de Deathloop é um dos principais pontos fracos do jogo. Os oponentes perdem o seu rastro rapidamente, os cones de visão parecem ser estreitos e limitados (sendo muito fácil de esgueirar por eles) e a reação ao combate limita-se a virem todos para cima de você sem qualquer estratégia (é normal ficar em um corredor afunilado com uma escopeta e derrubar dezenas de inimigos sem dificuldade). Não foi algo que me incomodou, porque, para mim, a diversão de Deathloop está em outro lugar… mas caso você esteja procurando um combate avançado e super estratégico, pode se decepcionar um bocado.
Embora não seja tão presente quanto em jogos como Returnal, Ratchet & Clank: Rift Apart ou em Astro’s Playroom, o uso do haptic feedback e dos gatilhos adaptáveis torna o jogo mais imersivo. Sentir a pulsação do inimigo ao aproximar-se dele furtivamente, o peso do gatilho para cada arma e o efeito do gatilho travando quando o equipamento emperra, juntamente ao áudio 3D disponível quando você utiliza fones de ouvido, ajudam a mergulhar o jogador com maior intensidade no mundo de Blackreef.
Finalmente, mesmo que você prefira a atuação de voz original, dê uma chance para a voz de Deathloop em português, que está simplesmente incrível. Dos atores, direção e a equipe técnica, estão todos de parabéns pelo trabalho irretocável.
Deathloop está disponível para Playstation 5 e PC. O review foi feito com base na versão Playstation 5 através do código de review gentilmente cedido pela Bethesda.
Designer por profissão e gamer de coração, Raphael é apaixonado por jogos que sejam imersivos e permitam que ele se esgueire por trás de seus inimigos, eliminando-os de forma silenciosa e impiedosa.